deságüe
a médica disse que ela precisava beber mais água
ela fazia um esforço em cada gole
mesmo sabendo que nada daquilo adiantaria
ela só desaguava, por tudo
pelo poros, pela urina, boca, nariz
mas principalmente pelos olhos,
os olhos estão com defeito.
“desaguar é bom”; “deságüe mesmo”,
todos dizem,
mas em demasia tá errado,
ela está com defeito.
desaguar demais faz tudo parar,
o quadro de pedra no rim é genético,
boca seca, digestão, dor de cabeça
muita coisa ruim.
desaguar em demasia te seca,
ela sabia disso.
ela deixa um rastro molhado por onde anda,
e anda sempre nas mesmas ruas,
os mesmos passos, os mesmos pés
e por ali já se comenta, das janelas, das corridas matinais, das quadras de tênis:
“lá vai ela, a moribunda” — rastro molhado.
mas um dia o rastro secou e se ouviu:
“ela não passou hoje”; “hoje ela não veio”
acabou.
acabou a água, não se deságua mais nada dali. secou.
o pó dos dias se mistura com o pó que costumavam ser seus ossos, células mortas, unhas e dentes.
com sorte, alguma corrente de ar a deságüe no mar.