deságüe

Lara Senger
1 min readMay 7, 2023

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a médica disse que ela precisava beber mais água

ela fazia um esforço em cada gole

mesmo sabendo que nada daquilo adiantaria

ela só desaguava, por tudo

pelo poros, pela urina, boca, nariz

mas principalmente pelos olhos,

os olhos estão com defeito.

“desaguar é bom”; “deságüe mesmo”,

todos dizem,

mas em demasia tá errado,

ela está com defeito.

desaguar demais faz tudo parar,

o quadro de pedra no rim é genético,

boca seca, digestão, dor de cabeça

muita coisa ruim.

desaguar em demasia te seca,

ela sabia disso.

ela deixa um rastro molhado por onde anda,

e anda sempre nas mesmas ruas,

os mesmos passos, os mesmos pés

e por ali já se comenta, das janelas, das corridas matinais, das quadras de tênis:

“lá vai ela, a moribunda” — rastro molhado.

mas um dia o rastro secou e se ouviu:

“ela não passou hoje”; “hoje ela não veio”

acabou.

acabou a água, não se deságua mais nada dali. secou.

o pó dos dias se mistura com o pó que costumavam ser seus ossos, células mortas, unhas e dentes.

com sorte, alguma corrente de ar a deságüe no mar.

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